Acreditar que o Jesus histórico realmente existiu não é mais problema para os
historiadores de maneira geral, pois há várias provas comprobatórias nesse
sentido. Evidências filológicas, arqueológicas, paleográficas... Enfim, negar a
passagem de Jesus pela terra seria hoje como assinar um atestado de obtusidade
histórica ou se declarar descontextualizado com as novas
descobertas.
Entretanto, alguns arvoram que, apesar da historicidade
humana de Jesus, seus seguidores o mitificaram com muitas lendas sem estribo
lógico, fazendo algumas questões parecerem truanices! Nesta pequena minuta sobre
este tema, nos deteremos em o quanto cooperou a “lenda” da concepção virginal de
Cristo para a sua deificação. Não quereremos provar com argumentos teológicos a
concepção virginal de Jesus. Afinal, isso é uma questão de fé. Nosso objetivo é
mostrar que realmente os cristãos da época acreditavam nisso, não por causa de
uma mitologia antecessora ao acontecimento cristológico, mas pelas evidências
que muitos alegaram ter!
A mitologia egípcia, babilônica e
greco-romana e a questão da divindade de Jesus
Bem, sabemos que
culturas bem anteriores à judaica-cristã já acreditavam em teofanias.1 Vejamos
alguns exemplos:
• Egito
O faraó egípcio retrata bem
o que estamos falando. Os faraós centralizavam todo o poder em si mesmos e eram
tidos como encarnação de Hórus, o grande deus, filho de Osíris (senhor dos
mortos), e da deusa Ísis. Por conta de tal ostentação, os faraós conseguiram ter
governabilidade extremamente teocrática e manter uma soberania durável, além de
serem cultuados como divinos.
• Mesopotâmia
As
religiões mesopotâmicas abrangem as crenças e práticas religiosas que moldaram a
cultura dos antigos sumérios e acadianos, e também de seus sucessores, os
assírios e os babilônios, habitantes da Mesopotâmia até pouco antes da era
cristã. Para eles, a escolha do rei, diferentemente da teofania egípcia, era uma
eleição divina, ou seja, acreditavam que os reis mais valentes, perspicazes e
vitoriosos deveriam ostentar o cetro real e governar por ordem dos deuses. Dos
panteões dos deuses, podemos destacar dois principais: Marduk e
Baal.
• Roma antiga
Segundo a lenda divulgada pelo
grande escritor Vergílio, no ano 29 a.C., Rômulo e Remo foram os fundadores de
Roma. A tradição conta que o usurpador Amúlio, após derrubar seu irmão Numitor
do trono de Alba Longa, obrigou Réia Sílvia, filha de Numitor, a converter-se em
virgem vestal (sacerdotisa de Vesta, deusa do fogo), para que não gerasse
descendência do antigo rei. Entretanto, a jovem Réia recebeu a visita do deus
Marte, que lhe apareceu em forma de serpente. Da relação sexual de Réia com esta
serpente Rômulo e Remo foram concebidos. E, devido a esse sinal miraculoso, Roma
fora fundada.
Os apóstolos ousariam apelar para uma mitologia
pagã?
A região da Mesopotâmia é o lugar em que encontramos maior
similaridade com a cultura judaica, e vice-versa. Tanto é que os judeus também
acreditavam em uma teocracia: “Então Samuel tomou o chifre do azeite, e ungiu-o
no meio de seus irmãos; e desde aquele dia em diante o Espírito do SENHOR se
apoderou de Davi; então Samuel se levantou, e voltou a Ramá” (1Sm 16.13). Isso,
no entanto, não significa que eles tinham afinidades religiosas com os
mesopotâmicos. Ao contrário, criou rivalidade entre eles. Prova disso é que essa
problemática foi um dos vários motivos de guerras entre os judeus e os povos
antigos da região (cf. os livros de Reis e Crônicas). Depois do cativeiro
babilônico, os hebreus se fecharam ainda mais. No período helênico,
aproximadamente no século II a.C., o povo hebreu resistiu bravamente à
helenização cultural impetrada por Antíoco Epifânio. Isso mostra a condição
sociológica em que sempre se manteve o povo judaico — separado e antagônico em
relação à mitologia pagã!
A contextualização sociológica da época de
Cristo é extremamente relevante para entendermos se alguma mitologia havia-se
infiltrado ou penetrado na cultura judaica. O dr. R. L. Hoover explica o
seguinte sobre a questão: “O judaísmo, no primeiro século da era cristã, era uma
religião baseada na revelação de Deus por meio das Escrituras, isto é, da Lei e
dos Profetas. Os judeus enfatizavam o monoteísmo e não era permitido sequer
louvar ou admitir a existência de qualquer outro deus”.2
O porquê de
estarmos explicando tudo isso é para responder às considerações de alguns que
argumentam negativamente a respeito da concepção virginal de Jesus. Ou seja,
para responder àqueles que acreditam que, se não existissem as lendas que
antecederam o fato cristão, Jesus jamais teria sido aceito como o Messias que
nascera de uma virgem.
Bem, mas será que a teologia cristã precisaria de
mais esse argumento para “mitificar” ou divinizar Jesus?
Será que os
apóstolos, sendo judeus, ousariam apelar para uma mitologia
pagã?
Algumas considerações relevantes
1). O mais relevante
para a aceitação messiânica de Jesus era se ele descendia da linhagem de Davi,
pois todas as profecias assim arvoravam a respeito do Cristo: “Eis que vêm dias,
diz o SENHOR, em que levantarei a Davi um Renovo justo; e, sendo rei, reinará e
agirá sabiamente, e praticará o juízo e a justiça na terra. Nos seus dias Judá
será salvo, e Israel habitará seguro; e este será o seu nome, com o qual Deus o
chamará: O SENHOR JUSTIÇA NOSSA” (Cf. Jr 23.5,6 e Mq 5.2). Por isso, tanto
Mateus quanto Lucas deixaram claro que José e Maria eram descendentes da tribo
de Judá — tribo de Davi (Cf. Mt 1 e Lc 3.23-38).
2). A profecia de Isaías
7.14, em que afirma que a virgem conceberia, servia, para o momento
cristológico, mais de embaraço para a exposição do evangelho do que para
corroboração da missão messiânica de Cristo. Explicamos: a aplicação imediata
desse vaticínio seria uma nubente que fora virgem até a ocasião do seu
casamento. Antes de o seu filho ter idade suficiente para distinguir entre o
certo e o errado, os reis da Síria e de Israel seriam destruídos (Is 7.16). Ou
seja, o fato já havia ocorrido como sinal na época do próprio profeta. Elucidar
aos judeus que tal profecia teve um duplo cumprimento foi muito difícil para os
discípulos de Cristo.
Já que Mateus e Lucas haviam provado a messianidade
de Jesus pela genealogia davídica, seria muito mais aproveitável para a causa se
os discípulos tivessem obliquado uma polêmica dessa envergadura que, de maneira
nenhuma, tiraria a ótica messiânica cristã. Além do mais, exige muita
credibilidade da parte dos críticos e dos céticos acreditar que autores judaicos
monoteístas como Mateus e Lucas poderiam empregar mitologia pagã em suas
narrativas.
3). Os apóstolos e os discípulos cristãos eram
etimologicamente judeus, e tinham uma educação religiosa judaica, o que tudo
indica que a maneira de pensar era bem diferente da maneira greco-romana.
Também, no princípio da pregação evangélica, os seguidores de Cristo acreditavam
que Jesus deveria ser primeiro e, de maneira exclusivista, apregoado aos seus
patrícios judeus. Só um tanto depois, mais precisamente após a experiência de
Pedro junto à família gentílica de Cornélio é que esse paradigma foi alterado e
o evangelho pregado a todos (At 10).
4). A sede da Igreja ficou em
Jerusalém até a sua destruição por Tito no ano 70 d.C. Isso, com certeza,
protegeu a teologia cristã em seu alicerce contra o sincretismo religioso que
vigorava no mundo romano.
Enumeramos essas quatro ocorrências para
mostrar que os discípulos não levariam vantagens em inventar um embuste como
esse na propagação do evangelho, principalmente entre os judeus. Jesus poderia
ter sido pregado sem necessariamente expor seu nascimento virginal. Seria falta
de critério uma pregação com mitos greco-romanos dentro do contexto judaico
oriental, a não ser que os apóstolos acreditassem mesmo que Jesus era nascido de
uma virgem.
A Igreja Apostólica nunca teve dúvida sobre a questão de
Jesus ter sido concebido por uma virgem. Os primeiros líderes da Igreja cristã,
chamados de Pais da Igreja, corroboraram positivamente com os ensinos dos
apóstolos. Em 110 A.D., Inácio escreveu: “Pois nosso Deus Jesus Cristo [...] foi
concebido no ventre de Maria [...] pelo Espírito Santo. Pois a virgindade de
Maria e Aquele que dela nasceu... são os mistérios mais comentados em todo o
mundo” (grifo do autor). Inácio recebeu a informação de seu mestre, o apóstolo
João.
Aristides, em 125 A.D., fala do nascimento virginal de Jesus: “Ele
é o próprio Filho do Deus excelso que se manifestou pelo Espírito Santo, desceu
dos céus e, nascido de uma virgem hebréia, se encarnou a partir da virgem”
(grifo do autor).
Em 150 A.D., Justino ofereceu muitas provas a favor da
idéia do nascimento milagroso do Senhor: “Nosso Mestre Jesus Cristo, que é o
primogênito de Deus Pai, não nasceu como resultado de relações sexuais [...] O
poder de Deus, descendo sobre a virgem, cobriu-a com sua sombra e fez com que,
embora ainda virgem, concebesse...”3 (grifo do autor).
O primeiro grande
cristão de fala latina foi o advogado convertido Tertuliano. Ele nos informa
que, em seus dias (ano 200 A.D.), existia não apenas um credo cristão
estabelecido, sobre o qual todas as igrejas concordavam. Ele cita esse credo
quatro vezes, o qual inclui as palavras ex virgine Maria, que significa: “da
Virgem Maria”, dando a entender claramente que Cristo nascera de uma mulher
virgem.4
O historiador e erudito R. E. Brown ainda comenta: “Paralelos
não-judaicos têm sido encontrados nas religiões mundiais (O nascimento de Buda,
de Krishna e do filho de Zoroastro), na mitologia greco-romana, nos nascimentos
dos faraós (com o deus Amon-Rá agindo por intermédio de seu pai) e nos
nascimentos sensacionais dos imperadores e filósofos (Augusto, Platão etc.). Mas
esses ‘paralelos’ sempre envolvem um tipo de hieros gamos em que um macho
divino, em forma humana ou em outra, insemina uma mulher, seja por meio do ato
sexual normal, seja por meio de uma forma substituta de penetração. Eles não são
realmente semelhantes à concepção virginal não-sexual que está no âmago das
narrativas da infância de Jesus, concepção esta em que nenhum elemento ou
deidade macho insemina Maria [...] Portanto, nenhuma busca por paralelos nos tem
dado explicação verdadeiramente satisfatória de como os primitivos cristãos
chegaram à idéia de uma concepção virginal — a menos, é claro, que ela realmente
tenha acontecido historicamente”.5
Independente de se acreditar no
milagre do nascimento virginal de Cristo ou não, para nós, nesta exposição, é
mais relevante mostrar que os primeiros cristãos só teriam motivos para falar
desse nascimento misterioso caso eles realmente acreditassem nesse milagre.
Então, podemos afirmar que qualquer conjectura de uma ideologia pagã no seio
primitivo da Igreja para elevar Cristo a divino seria falar de uma incongruência
muito grande, seria desconhecer a cultura judaica e sua grande complexidade. O
que realmente esperamos é que o leitor reflita e consiga fazer suas próprias
conjecturas sobre o explicitado nestas sucintas linhas.
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