“Porque ninguém pode pôr outro fundamento além do que já está posto, o qual é
Jesus Cristo” (1Co 3.11)
A expressão “mudança de paradigma” é
freqüentemente usada pelos historiadores da filosofia. Na Grécia antiga, os
filósofos pré-socráticos, também denominados de “naturalistas”, preocupavam-se
em dar explicações sobre o “arché”, ou princípio de todas as coisas. Para Tales
de Mileto, que viveu no século 7º a.C, esse princípio, do qual todas as coisas
derivaram, era a “água”. Por outro lado, para Anaximandro, que viveu entre os
séculos 7º e 6º a.C., o “apeiron”, ou o ilimitado, explicaria a origem de todas
as coisas. Já Anaxímenes afirmava que o “ar”, não a água, era o “arché” de todas
as coisas. Até aqui esses pensadores estavam preocupados em dar explicações
sobre o “cosmo”.
A grande mudança no pensamento grego, como afirmam os
historiadores da filosofia, veio com os “sofistas” (os sábios). Com a escola
sofística, “o homem”, não “o cosmo”, passou a ser o centro do Universo.
Protágoras de Abdera, que viveu entre 491 e 481 a.C, afirmou ser “o homem a
medida de todas as coisas”. Nesta frase de Protágoras está revelada a grande
mudança de paradigma na história do pensamento Ocidental; a visão de mundo
deixou de ser cosmocêntrica para se tornar antropocêntrica. O homem agora
passava a ser o centro das atenções na filosofia ocidental.
Quanto mais
observo o movimento de renovação católica, mais convencido fico a respeito dessa
“mudança de paradigma” no pensamento carismático cristocêntrico no passado e
mariocêntrico no presente. A diferença entre a mudança de paradigma do
pensamento grego para o carismático é que aquele foi uma mudança que provocou um
progresso na civilização, enquanto este promoveu um retrocesso dentro da
renovação.
Ainda muito cedo em sua história, a renovação carismática
demonstrava ser incompatível com o catolicismo tradicional. Seus traços
doutrinários, que lembravam os pentecostais clássicos, incomodavam o clero
romano. Por isso, “em 1974 o movimento abandonou o termo pentecostal por outro
mais neutro: carismático, para não ser confundido com os pentecostais mais
antigos”.1 Quando examinamos o Novo Testamento, observamos que a diferença entre
esses termos, imposta pela renovação carismática, não tem fundamento, uma vez
que as palavras pentecostal e carismático, podem ser encontradas nas páginas
sagradas como sinônimas, suas diferenças são puramente didáticas. A palavra
pentecostal, aplicada no início da vinda do Espírito Santo, conforme registrada
no livro de Atos 2.4, posteriormente tornou-se sinônimo dos carismas desse mesmo
Espírito.
A propósito, observa a Enciclopédia Judaica: “O termo
‘pentecostal’, derivado de ‘pentecostes’, é uma tradução grega para a palavra
hebraica shavuot (semanas), uma das mais importantes festas do judaísmo antigo.
Os judeus helenistas [...] que só utilizavam o idioma grego, chamavam o shavuot
de ‘pentecostes’ (do grego, Pente Kostus, que significa ‘qüinquagésimo’) porque
era festejado cinqüenta dias após a oferenda do molho de cevada que se fazia no
Templo de Jerusalém, no segundo dia de Pessach (páscoa)”.2
Como o
derramamento do Espírito Santo (At 2.1-4) aconteceu nesse dia, o termo
“pentecostal” ficou associado às manifestações do Espírito de Deus. É
precisamente isso o que diz o expositor bíblico J. D. G. Dunn, ao falar sobre A
significância do pentecostes para os cristãos primitivos: “O Pentecostes
significa, primeiramente, o derramamento do Espírito que Deus prometeu para os
tempos do fim. As manifestações carismáticas e estáticas que se atribuíam ao
Espírito de Deus eram um aspecto distintivo e importante do cristianismo
palestino mais primitivo, bem como do cristianismo helenístico posterior [...].
Atos 20.16 pode até indicar que a igreja em Jerusalém observava o Pentecostes
como aniversário do derramamento do Espírito”.3
Por outro lado, o termo
carismático, que vem do grego charismatón (derivado de charizomai – “dom”,
“graça”), aparece na primeira carta aos Coríntios (12.4), quando Paulo usa o
termo para também se referir às manifestações do Espírito Santo na Igreja.
Archibald Thomas Robertson, erudito em língua grega, comenta em The Word’s New
Testament Pictures, que essa palavra “significa um favor [...] concedido ou
recebido sem um mérito”.4 O charismaton passou a ser um termo também usado para
os dons do Espírito Santo.
Querer fazer uma diferença abismal entre esses
termos, como pretende a renovação, é revelar claramente a ideologia desse
movimento, que tenta dar-lhe uma identidade mais católica. Em seu livro
Carismáticos e pentecostais – adesão na esfera familiar, a socióloga Maria das
Dores C. Machado mostra que a ingerência na Renovação Carismática,
principalmente pelo papado, tem a nítida intenção de controlá-la. A doutora
Machado afirma: “De maneira geral, revelam um esforço da hierarquia da igreja,
sobretudo do papado, em controlar o movimento, evitando possíveis cismas e, ao
mesmo tempo, canalizar a militância evangelizadora em favor da religião
católica. A devoção à Virgem Maria foi estimulada para demarcar as fronteiras
entre o catolicismo e o pentecostalismo e, em certa medida, reforçar a
identidade religiosa dos carismáticos”.5
Não há, pois, como negar que a
renovação católica moderna perdeu aquela identidade pentecostal que caracterizou
o início de seu movimento, para se tornar uma caixa de ressonância do
catolicismo tradicional.
Reavivamento mariano
Doutrinas que
tiveram suas origens na Idade Média, a conhecida Idade das Trevas, começaram a
ser incorporadas à Renovação: “Uma das características bem peculiar da Igreja
Católica é a sua flexibilidade para assimilar novas tendências, sem dividir.
Isto aconteceu com o movimento carismático católico que alcançou seu ápice na
década de 70, mas, com o tempo, a hierarquia católica começou a dar algumas
diretrizes ao movimento para que se tornasse mais católico. Entre essas
diretrizes estava uma ênfase maior na participação da missa, na eucaristia e na
veneração a Maria”.6
Até aqui já é possível percebermos que de fato houve
uma mudança de paradigma no pensamento da Renovação Carismática, outrora
cristocêntrico, agora centralizado na Virgem Maria. É precisamente isso o que
diz Paulo Romeiro, quando põe em destaque esse enfoque mariano por parte da
renovação carismática: “O movimento carismático não se afasta da idolatria. Ao
mesmo tempo em que fala do Senhor, fala da senhora [...] os líderes do movimento
carismático confirmam, na mídia, que o objetivo deles é exaltar nossa senhora.
Dizem que precisam ‘restaurar o espaço de Maria’”.7
Ficamos perplexos
quando vemos importantes líderes carismáticos renovando o marianismo, uma
doutrina estranha às Escrituras Sagradas. O marianismo se tornou a pedra
fundamental no atual movimento de renovação carismática. Vemos isso, por
exemplo, quando lemos as palavras do padre mexicano, o carismático Salvador
Carrillo Alday, que, ao comentar sobre os “frutos do Espírito”, coloca a devoção
a Maria como sendo um deles. Veja:
• Verdadeira conversão a Deus e
renovação interior bastante profunda.
• Experiência de nova relação de
intimidade com Cristo.
• Forte consciência de que a comunidade religiosa só
pode ser criação do Espírito Santo, que derrama em nossos corações o amor de
Deus.
• A fome da Palavra de Deus (Am 8.11).
• A volta para uma devoção
séria e centralizada na Santíssima Virgem”.8
Como prova desse “fruto do
Espírito”, Carrillo apresenta testemunhos de carismáticos que, na busca de seu
“pentecostes” ou na própria experiência do “batismo no Espírito Santo”, põem em
relevo a pessoa de Maria. Lemos o testemunho de um desses batizados: “Recebi o
batismo no Espírito e devo dizer que o Senhor agiu maravilhosamente comigo e
estou muito satisfeito [...] verifiquei claramente a presença singular da Virgem
Maria na ação carismática do Espírito nas almas”. Um outro testemunho diz:
“Cresci no amor de Maria, e com grande alegria aproximo-me mais do Pai [...] o
Senhor e a Virgem Santíssima eram meus grandes confidentes; neles encontrei
força para continuar”; e mais: “a Virgem Maria estava muito próxima de mim como
mãe”.9
Ainda na mesma obra, o autor, ao falar sobre a Oração na renovação
carismática, responde à pergunta: “E o que dizer da Virgem Maria, Mãe de
Jesus?”. Resposta: “Sempre está presente em todo o grupo de oração. E é normal e
devido, pois, assim como participou tão intimamente do mistério de Jesus, da
encarnação do Filho de Deus durante sua vida na terra, ao pé da cruz e da efusão
do Espírito Santo no dia de pentecostes, assim também, cada vez que se procura
construir o corpo de Cristo, a Igreja reconhece sua presença de mãe e sente sua
poderosa intercessão a favor de todos os filhos seus. Ela é verdadeiramente a
Mãe da comunidade orante”.10
Para o carismático Isac Valle, entre os
muitos efeitos produzidos pela renovação carismática, um deles é “um grande
apreço pela devoção a Maria Santíssima”.11 As palavras: “devoção” e
“intercessão”, ligadas à pessoa de Maria, são freqüentemente citadas nas obras
de autores da renovação carismática. O também carismático padre italiano S.
Falvo afirma em sua obra O Espírito Santo nos revela Jesus, que é Maria quem
revelará Jesus nas páginas do seu livro. Ele declara: “E será Maria, a criatura
que a Cristo mais se assemelha e que conheceu a Jesus mais e melhor do que todos
os homens, quem no-lo revelará”.12 Em palavras mais simples, para Falvo, é Maria
e não o Espírito Santo o agente da revelação divina.
É bem verdade que
esse ranço mariano na RCC já aparecia entre alguns dos primeiros carismáticos,
todavia, não de forma tão acentuada, nem nas proporções em que se encontra hoje,
pois, como já falamos, a grande maioria dos primeiros carismáticos era
cristocêntrica.
Em seu livro, Católicos pentecostais, Kevin Ranaghan
relata algumas experiências de supostos “batismos no Espírito Santo” no início
desse movimento, que nos permitem enxergar claramente isso. Lemos: “Descobri uma
profunda devoção a Maria, e posso agora louvar a Deus”.13 Ranaghan continua
citando mais testemunhos: “Como muitos dos nossos amigos já descobriram, o
Espírito Santo renovou nosso amor pela igreja. Onde antes havia apenas o verniz
institucional para nós, descobrimos agora vida, poder e calor. As devoções
naturais, como a de Maria, por exemplo, tornaram mais
significativas”.14
Tudo o que temos afirmado até aqui não se trata de
frases soltas nem descontextualizadas. Importantes vozes dentro da renovação há
muito empunharam a bandeira do marianismo. O cardeal Suenens, respeitada
autoridade dentro da renovação carismática, fala de uma “comunhão do Espírito
Santo em Maria”. E diz mais: “A união vivida com Maria é da mesma ordem:
respirar Maria é respirar o Espírito Santo”.15
Atento a toda essa nova
ênfase dada à pessoa da Virgem Maria por parte da renovação carismática católica
em solo americano, a obra The New International Dictionary of Pentecostal and
Charimastic Movements, traz uma importante observação sobre o assunto. Após
analisar cinco das principais diferenças entre os pentecostais clássicos e a
renovação carismática católica, esta conceituada obra conclui: “A abençoada
virgem Maria, embora simbolicamente não ocupe o foco da reunião da renovação
carismática católica (americana), é, todavia, esperada estar presente e algumas
vezes é invocada em hinos ou orações. Participantes da renovação católica
carismática que têm achado o seu caminho dentro do movimento mariano, tendo
crescido acostumado a agir como canal de mensagens do céu, podem não hesitar em
expressar profecias que crêem ter recebido da parte de Maria ou de outros santos
por meio de sonhos, visões ou “locuções interiores”.16
Em sua defesa,
teólogos caris-máticos fazem um verdadeiro malabarismo exegético, no sentido de
justificar essas crenças antibíblicas, em especial o culto à pessoa de Maria.
Muitos deles, seguindo Tomás de Aquino,17 tentam, de forma perspicaz, fazer uma
diferença, que logicamente não existe, entre “venerar” e “adorar” ou entre
“latria” e “dulia”, enquanto outros afirmam que somente “no catolicismo popular”
as pessoas confundem esses termos.
Renovação carismática versus
catolicismo tradicional
Façamos uma breve reflexão sobre as
afirmações feitas até aqui, tanto por parte da renovação carismática como também
por parte do catolicismo tradicional, no que concerne ao destaque dado à
“devoção” a Maria e seu papel de “intercessora” e até mesmo como aquela que
“revela” a pessoa de Cristo.
No mínimo, essas afirmações são
problemáticas, pois contrariam o ensino das Sagradas Escrituras. Primeiramente,
a Bíblia diz: “Ao Senhor teu Deus adorarás, e só a ele servirás” (Mt 4.10). Em
segundo lugar, a Escritura afirma que só existe um mediador entre Deus e os
homens, que é Jesus Cristo: “Porquanto há um só Deus e um só Mediador entre Deus
e os homens, Cristo Jesus, homem” (1Tm 2.5). Em terceiro, a Bíblia diz que o
agente da revelação divina é o Espírito Santo. É Ele quem nos revela a pessoa de
Jesus: “Mas, quando vier aquele, o Espírito de verdade, Ele vos guiará em toda a
verdade; porque não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos
anunciará o que há de vir” (Jo 16.13). Em quarto e último lugar, a Escritura é
taxativa em afirmar: “...e a nossa comunhão é com o Pai, e com seu Filho Jesus
Cristo” (1Jo 1.3).
Todos esses problemas teológicos insuperáveis dentro
da atual renovação carismática, com uma teologia medieval enxertada em seu seio
e que a leva a se autocontradizer, nos mostram que essa crise pela qual passa a
atual renovação católica é estrutural. Em palavras mais simples, o problema é
mais sério do que comumente se tem pensado, uma vez que se encontra nos
alicerces sobre os quais a renovação foi edificada.
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