O filme The Passion of the Christ, em exibição nos cinemas brasileiros desde 19
de março, tem suscitado uma polêmica apaixonada nos meios culturais e religiosos
do mundo ocidental. Mel Gibson, o famoso ator e diretor de Hollywood, mais
conhecido por sua atuação em filmes de ação, disse ter-se sentido inspirado a
fazer The Passion of the Christ depois de passar por uma profunda crise pessoal
que o levou de volta à fé de seus primeiros anos. Católico da velha guarda, que
não aceita as renovações propostas pelo Concílio Vaticano II, Gibson mandou
construir uma capela particular, onde todos os dias são celebradas missas em
latim.
Acusação de anti-semitismo
Muito antes de seu
lançamento, o filme foi criticado por ser discriminatório e incitar a violência
contra o povo judeu. Entre os detratores, inclusive, muitos que nunca tinham
assistido às dezenas, talvez centenas, de previews exibidos antes da estréia
oficial. Gibson foi acusado de retratar os judeus como os responsáveis pela
morte de Jesus. Seus detratores dizem que esta imagem negativa pode acirrar o
sentimento anti-semita latente em muitos indivíduos e levá-los a atos de
violência contra os judeus. Alguns chegam até a sugerir que poderia haver uma
onda de atos brutais semelhantes aos maus-tratos infringidos aos judeus durante
o governo de Adolf Hitler na Alemanha da primeira metade do século 20. O próprio
rabino-mor de Israel solicitou ao papa João Paulo II que interviesse por causa
da polêmica desatada pelo filme.
Em inúmeras entrevistas, Mel Gibson
procurou deixar claro que havia tentado fazer uma descrição das últimas doze
horas de vida de Jesus tão fiel ao relato dos evangelhos quanto possível.
Esclareceu também que não é anti-semita e que ama o povo judeu. Chegou mesmo a
dizer que odiar o povo judeu é contra a sua fé e constituiria em pecado. Sua fé,
recobrada após a crise pessoal pela qual passara, foi o motor da iniciativa de
contar a história do Salvador. Não se trata, conforme explica, de única
narrativa cinematográfica válida sobre a paixão ou sofrimento de Jesus, mas da
interpretação da paixão segundo Mel Gibson.
Se o filme tem sido objeto de
crítica acirrada por parte de alguns, há outros que saúdam a obra do ator e
diretor como sendo, talvez, a mais brilhante encenação do sofrimento de Jesus.
Entre esses, muitos líderes evangélicos, que vêem no filme uma excelente
ferramenta evangelística. Em muitos lugares dos EUA, especialmente no chamado
Cinturão da Bíblia e na Califórnia, membros de igrejas católicas e evangélicas
compraram ingressos antecipados para assistir ao filme.
Muitas igrejas
alugaram salas de cinema e lotaram-nas com seus membros e convidados, e chegaram
até mesmo a fazer apelos, após a exibição, aos não-cristãos, para que aceitassem
a Cristo como Salvador. Além de promoverem o filme entre seus adeptos, alguns
líderes estão produzindo materiais de estudo bíblico baseados no mesmo. Dessa
forma, tentam estimular os fiéis a pensarem no significado da morte de Cristo e,
após essa reflexão, serem usados como guias em grupos de evangelização ou em
conversas com os interessados em saber mais sobre Jesus. Um líder dos batistas
do Sul, a maior denominação protestante dos EUA, chegou até mesmo a saudar o
filme como a maior estratégia evangelística desde as cruzadas de Billy
Graham.
Sucesso absoluto de bilheteria, a fita alcançou a cifra de mais
de 200 milhões de dólares nos doze primeiros dias de exibição. Começa com a
oração agonizante de Jesus no Getsêmani e sua traição por Judas e prossegue num
crescendo de violência, pontilhado de flashbacks, com Jesus sendo espancado
pelos guardas do templo e pelos soldados romanos, a hesitação de Pilatos em
condená-lo, o vozerio da turba pedindo sua crucificação e termina com Jesus
expirando na cruz, mas não sem uma breve cena indicando a ressurreição. Esta
poderia ser o indício de que Gibson talvez pretenda fazer uma
seqüência.
Entre o público, as reações têm sido geralmente carregadas de
fortes emoções. Num caso extremo, uma mulher de meia-idade morreu de enfarte
após assistir à cena da crucificação. Muitos saem dos cinemas chorando, tocados
pelo sofrimento de Jesus, nunca antes mostrado em tal detalhe em filmes de
Hollywood, os quais geralmente mostram um Jesus plastificado, impávido diante do
padecimento que lhe é imposto por seus algozes. O Jesus de The Passion é um
Cristo que se resigna ao sofrimento por entender ser esta a vontade de Deus para
sua vida, mas que é suficientemente humano para vergar sob o peso da dor e da
humilhação às quais é submetido.
Um filme “católico”
O
filme de Mel Gibson bem poderia ser classificado como “católico”, na opinião de
Robert Johnston, professor de teologia e cultura do Seminário Teológico Fuller.
Ele se concentra na paixão ou sofrimento de Cristo, um tema quase onipresente na
literatura católica, especialmente dos místicos. Não há como negar que a
flagelação de Cristo é muito mais rememorada do que sua ressurreição, no
contexto católico romano. Podemos dizer que essa tendência apresentada em todo o
filme é antes retratada de forma incontestável nos ícones católicos, os quais,
na sua maioria, demonstram um Cristo infante no colo de sua mãe protetora ou um
Cristo agonizando na cruz. São imagens que suscitam sentimento de piedade, pena,
compaixão e parecem revelar fragilidade e impotência. Obviamente, isso é um
fator influenciador. Há católicos que, em tempos da celebração da Páscoa,
“pagam” seus votos por meio de sacrifícios, o que dá a entender que estão
querendo tomar sobre si uma partícula do que Cristo sofreu. Em casos extremos,
há até aqueles que chegam a “confeccionar” sua própria cruz, carregando-a sobre
os ombros e simulando uma espécie de “via-crúcis”.
Diferentemente, os
protestantes, em geral, observa Johnston, parecem deixar de lado a paixão para
se concentrarem na ressurreição de Jesus, sua vitória sobre a morte.1
Biblicamente, não devemos querer construir um “cabo-de-guerra” sobre estas
questões. De fato, a Santa Ceia do Senhor é uma ordenança deixada para que os
cristãos rememorassem periodicamente o sofrimento de Cristo na cruz, e isso deve
ser observado. Mas qual seria o valor do sacrifício de Cristo se Ele não tivesse
ressuscitado?
Além da exploração do sacrifício de Cristo e a quase que
ausente ressurreição, o filme destaca Maria, a mãe de Jesus, e aspectos da
tradição católica romana, como o ato misericordioso de Verônica de enxugar o
rosto ensangüentado de Jesus, o que é cogitado pela igreja romana como o véu em
que ficou gravada a autêntica imagem do rosto de Jesus. E mais: o diretor,
usando de licença artística, criou certos segmentos que não se encontram nem nos
evangelhos nem na tradição católica para preencher a narrativa.
Um
exemplo foi o uso de uma mulher no papel de Satanás, cujo objetivo é comunicar a
idéia de que o mal é atraente. Outro é o uso deliberado das palavras de Jesus
fora do seu contexto original. Embora use elementos extrabíblicos, pode-se dizer
que o filme não é antibíblico. A reconstrução de época é bem feita e as
personagens parecem reais, embora falem com uma entonação artificial, talvez
criada pela decisão de manter todos os diálogos em aramaico e latim,
acompanhados de legenda. Também surpreende ver Jesus falando em latim com
Pilatos, o que provavelmente nunca ocorreu, pois o idioma normalmente utilizado
pelos romanos no oriente era o grego.
Sem dúvida, The Passion of the
Christ passará para a história não só como um grande sucesso de bilheteria e por
ter originado tamanha controvérsia, mas também por provocar perguntas
perenes.
Quem matou Jesus?
Uma das controvérsias geradas
por The Passion of the Christ está relacionada aos culpados pela morte de Jesus.
Mel Gibson está sendo acusado de ter mostrado os judeus como responsáveis pelo
ato. Convém lembrar que a Igreja Católica Romana oficialmente manteve, durante
muito tempo, que os judeus foram os responsáveis pela execução de Jesus,
chamando-os de “povo deicida”. Este estigma só foi removido em 1965, pelo papa
João XXIII, na encíclica Nostra Aetate. Sendo um católico pré-conciliar ou
tradicionalista, não é difícil entender por que Gibson foi alvo dessas
acusações.
Num contexto histórico, houve três responsáveis pela morte de
Jesus:
Pôncio Pilatos
O primeiro foi, sem dúvida,
Pôncio Pilatos, o famigerado procurador ou governador romano da Judéia, entre 26
e 36 d.C. Conhecido por sua hesitação diante das acusações feitas a Jesus por
seus inimigos, Pilatos decidiu “lavar as mãos”, ato que se tornou proverbial.
“Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando
água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste
justo. Considerai isso” (Mt 27.24). Entretanto, sua responsabilidade pela
execução de Jesus não foi em nada diminuída, porque, como representante
imperial, era o único que podia ditar a sentença de morte. Além disso, Pilatos
estava ciente da inocência de Jesus e sabia que seus inimigos o queriam condenar
à morte por motivos políticos.
Os judeus
O segundo
responsável foi o grupo de judeus que pediu a Pilatos a execução de Jesus.
Embora os inimigos de Jesus não detivessem o poder de matá-lo, claramente
queriam livrar-se do Salvador. Por causa de sua insistente demanda,
primeiramente acusando Jesus de ter quebrado a lei judaica e depois de querer
ocupar o lugar de César, no tocante à lealdade do povo, Pilatos finalmente
cedeu, ordenando sua crucificação. O sumo sacerdote Caifás, os demais membros da
classe sacerdotal e os fariseus, inimigos viscerais de Jesus, foram auxiliados
pela turba que, incitada por aqueles, quando conclamada por Pilatos a
pronunciar-se sobre o destino de Jesus, gritava: “Crucifica-o”. “Então ele, pela
terceira vez, lhes disse: Mas que mal fez este? Não acho nele culpa alguma de
morte. Castigá-lo-ei pois, e soltá-lo-ei. Mas eles instavam com grandes gritos,
pedindo que fosse crucificado. E os seus gritos, e os dos principais dos
sacerdotes, redobravam. Então Pilatos julgou que devia fazer o que eles pediam”
(Lc 23.22-24).
A atribuição da responsabilidade aos judeus de modo
indiscriminado, entretanto, baseia-se na resposta dada pela multidão presente ao
julgamento de Jesus, quando Pilatos tentou se eximir da sua responsabilidade
pessoal: “Caia sobre nós o seu sangue, e sobre nossos filhos!” (Mt 27.25). Estas
palavras têm sido interpretadas por alguns teólogos como se uma maldição divina
tivesse vindo sobre o povo judeu por causa de sua rejeição ao Messias. Embora
não exista nenhuma base nos documentos neotestamentários para sustentar esta
hipótese, a suposta maldição divina foi usada como justificativa para a
perseguição e massacre dos judeus ao longo dos séculos. Ela foi evocada pelos
Pais da igreja, pelos cruzados e pelos nazistas no holocausto como uma
justificativa para seu anti-semitismo e o extermínio do povo
judeu.
Jesus, o Cristo
Historicamente, o último
responsável pela morte de Jesus foi o próprio Jesus. Alguns críticos dizem que
Jesus manipulou as profecias messiânicas do Antigo Testamento para fazer parecer
que elas se cumpririam nele. Apregoam, por exemplo, que, ao entrar na cidade de
Jerusalém montado em um jumento, Jesus estava fazendo parecer que cumpria o que
o profeta Zacarias tinha escrito quinhentos anos antes sobre a entrada triunfal
do Messias, ou Cristo, na capital israelita (Zc 9.9). Contudo, mesmo se Jesus
tivesse forjado o cumprimento dessa profecia e manipulado o povo de Jerusalém,
que o recebeu com alegria, tal como profetizara Zacarias, há vários aspectos
cercando a morte de Jesus que Ele não poderia ter controlado. Pilatos, por
exemplo, não foi manipulado por Jesus. Até o último instante o governador fez o
que pôde para livrar Jesus de seus acusadores, sem sucesso. Mas sob a ameaça dos
líderes dos judeus de ser denunciado a César, cedeu à pressão por medo de pôr em
risco sua carreira política.
Tanto os líderes quanto o povo, e também
Pilatos, ao pedirem a crucificação de Jesus estavam cumprindo,
involuntariamente, várias profecias que indicavam o modo como o Messias iria
sofrer nas mãos de seus algozes. O profeta Isaías, no capítulo 53 de seu livro,
escrito mais de setecentos anos antes da crucificação de Jesus, previu a morte
do Messias, a quem chama de Servo de Javé. Conforme Isaías, o Messias seria
traspassado, uma clara indicação do tipo de morte que Ele sofreria. Outros
escritores do Antigo Testamento também previram a natureza da morte do Messias.
O Salmo 22 oferece uma surpreendente descrição da agonia sofrida por um
crucificado. No versículo 16, o salmista declara inequivocamente que as mãos e
os pés do Cristo seriam traspassados. Tudo isso é muito surpreendente, visto que
os judeus não praticavam a crucificação. A lei judaica estipulava que os
criminosos condenados à morte deveriam ser executados por
apedrejamento.
Se Jesus não manipulou as profecias em seu próprio favor,
então em que sentido Ele foi responsável por sua própria morte? Os evangelhos
dizem repetidamente que Jesus afirmou que daria a sua vida voluntariamente e que
ninguém poderia tirá-la se Ele não o desejasse. No evangelho de João, Jesus
declara que daria sua vida espontaneamente para tornar a recobrá-la: “Por isto o
Pai me ama, porque dou a minha vida para tornar a tomá-la. Ninguém ma tira de
mim, mas eu de mim mesmo a dou; tenho poder para a dar, e poder para tornar a
tomá-la. Este mandamento recebi de meu Pai” (Jo 10.17,18).
Depois de
comparar-se a um bom pastor que dá a sua vida pelas ovelhas, Jesus indicou que
sua morte seria vicária, isto é, uma morte substitutiva, por meio da qual suas
“ovelhas”, ou seja, seus seguidores, obteriam a vida eterna: “Eu sou o bom
Pastor; o bom Pastor dá a sua vida pelas ovelhas. Mas o mercenário, e o que não
é pastor, de quem não são as ovelhas, vê vir o lobo, e deixa as ovelhas, e foge;
e o lobo as arrebata e dispersa as ovelhas. Ora, o mercenário foge, porque é
mercenário, e não tem cuidado das ovelhas. Eu sou o bom Pastor, e conheço as
minhas ovelhas, e das minhas sou conhecido. Assim como o Pai me conhece a mim,
também eu conheço o Pai, e dou a minha vida pelas ovelhas” (Jo
10.11-15).
Em muitas outras oportunidades, Jesus advertiu seus discípulos
de que iria sofrer e morrer em Jerusalém (Mt 16.2; 17.22-23; 20.17-19; 20.28).
Em várias ocasiões, seus inimigos tentaram matá-lo, mas todas as tentativas
foram frustradas, até chegar o momento em que Ele se ofereceu
voluntariamente.
Mesmo depois de preso, Jesus poderia ter evitado sua
morte se tivesse negado as acusações contra Ele. Tanto o sumo sacerdote como
Pilatos lhe ofereceram a oportunidade de se livrar, mas, nas duas ocasiões, Ele
recusou tal oportunidade, por entender que havia chegado o momento para o qual
tinha vindo ao mundo.
Há, porém, outro sentido pelo qual os evangelhos
definem os responsáveis pela morte de Jesus. Esse sentido poderia ser chamado de
“responsabilidade cósmica”. Ao explicar seu propósito de vida aos discípulos,
Jesus declarou que o “Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir,
e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45). Com estas palavras, Jesus
esclareceu, como fez em diferentes ocasiões, que o propósito da sua vinda à
terra foi efetuar a reconciliação entre Deus e o ser humano, que se havia
alienado de seu Criador por intermédio do pecado.
Os evangelhos
testemunham que Jesus “veio para o que era seu, mas os seus o rejeitaram. Mas a
todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem filhos de Deus; a saber:
aos que crêem no seu nome” (Jo 1.11,12). Este testemunho está presente em todo o
Novo Testamento, especialmente nas epístolas de Paulo, que declara que “Cristo
morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras” (1Co 15.3).
Portanto,
respondendo à pergunta “Quem matou Jesus?”, num sentido bem real e bíblico,
todos os seres humanos foram os responsáveis últimos por sua
morte.
Merecem confiança os evangelhos?
Quando se pensa na
paixão de Jesus, uma das primeiras perguntas que vêm à mente está relacionada à
questão de sua historicidade. Para determinar se Jesus foi, de fato, um
personagem histórico, é necessário saber, antes, se os evangelhos, os principais
relatos existentes de sua vida, obra, morte e ressurreição, são dignos de
confiança. Até o início do século 18, poucos se atreviam a duvidar da
autenticidade dos evangelhos, porém, com o advento do racionalismo, alguns
teólogos passaram a questionar sua historicidade e a atribuir os aspectos
sobrenaturais dos mesmos, como a divindade de Jesus, seus milagres e
ressurreição, a mitos desenvolvidos pelos primitivos cristãos, para fornecerem
uma aura de revelação divina à sua religião e propagarem com sucesso sua
mensagem entre tantas outras superstições. A confiabilidade dos evangelhos, como
documentos autênticos, é, portanto, a pedra de toque do
cristianismo.
A datação dos evangelhos
Em primeiro lugar,
vem a questão envolvendo a época em que os evangelhos foram escritos. Os
críticos dos séculos 18 e 20 chegaram a aventar datas extremamente tardias,
como, por exemplo, meados do século 2º d.C. Hoje, entretanto, sabe-se, com
razoável certeza, que todos os quatro evangelhos foram produzidos no século 1º
enquanto os apóstolos e outras testemunhas oculares dos eventos neles narrados
ainda estavam vivos.
Para o evangelho de Marcos, supostamente o primeiro
a ter sido escrito, alguns estudiosos atribuem a data de 45 d.C.,
aproximadamente quinze anos após a morte e ressurreição de Jesus, embora a
maioria o date entre 65 e 67 d.C.2 Dos documentos antigos do Novo Testamento
existentes ainda hoje, o mais antigo é o Papiro Rylands 457, datado do início do
século 2º d.C. Contendo trechos do capítulo 18 do evangelho de João, este papiro
faz que o manuscrito, saído das mãos do autor, conhecido como autógrafo, seja
datado de pelo menos fins do século 1º. Outro papiro, conhecido como P75, também
datado do século 2º, contém grande parte dos evangelhos de João e
Lucas.
Entretanto, alguns estudiosos concluíram que um fragmento do
evangelho de Mateus antecede os dois papiros mencionados, estipulando sua data
para 68 d.C., aproximadamente. De qualquer modo, fica estabelecida uma datação
para os evangelhos que não excede os limites do século 1º.
O conteúdo
dos evangelhos é fidedigno?
Uma questão, ainda mais importante,
vinculada à datação, é se os evangelhos são testemunhos autênticos da vida,
morte e ressurreição de Jesus. Em outras palavras, podemos aceitar o relato dos
evangelhos como verídico? Quando os evangelhos foram escritos, muitas
testemunhas oculares ainda estavam vivas, inclusive a maioria dos inimigos de
Jesus. Estas testemunhas poderiam ter agido para corrigir possíveis erros
contidos nos evangelhos.
A idéia de que os evangelhos contêm elementos
místicos não procede. Isso porque as testemunhas estavam vivas e um mito,
geralmente, leva séculos para se desenvolver. Para dar um exemplo: as duas
biografias mais antigas de Alexandre, o Grande, datam de mais de quatrocentos
anos após sua morte, em 323 a.C. Muito material lendário foi criado acerca de
Alexandre, mas somente depois que as duas biografias foram escritas. Ainda hoje,
ambas são aceitas como dignas de crédito. Esta comparação serve para mostrar
como teria sido praticamente impossível os mitos a respeito de Jesus se
desenvolverem em tão pouco tempo.
Os evangelhos foram corrompidos ao
longo dos séculos?
Outra acusação feita por alguns críticos é que os
evangelhos foram corrompidos ao longo dos séculos. Os evangelhos que temos,
portanto, não seriam exatamente iguais aos originais, mas o resultado de
alterações feitas por motivos religiosos e políticos. Entretanto, o Novo
Testamento é, escancaradamente, o documento mais bem atestado da antiguidade.
Existem mais cópias do Novo Testamento do que de qualquer outro documento
antigo. São mais de cinco mil manuscritos em grego e versões antigas em siríaco
e outras línguas. A Ilíada de Homero, uma das maiores obras da antiguidade
grega, empalidece quando comparada ao Novo Testamento. As cópias mais antigas
existentes hoje são dos séculos 2º e 3º d.C. Em geral, estas cópias são aceitas
pelos estudiosos como autênticas. Este exemplo serve para realçar a evidência em
favor da integridade dos evangelhos.
E o que dizer das variantes nos
manuscritos do Novo Testamento?
Este é outro ponto ressaltado para
diminuir a confiabilidade dos evangelhos. Por terem sido produzidas em
diferentes áreas e sob diferentes circunstâncias, e devido aos erros de
ortografia dos copistas, alguns manuscritos contêm diferenças entre si. Bruce
Metzger, uma das maiores autoridades em grego neotestamentário da atualidade,
afirma que as diferenças não afetam substancialmente nenhuma doutrina cristã.3
Norman Geisler e William Nix acrescentam: “O Novo Testamento, então, não apenas
sobreviveu em maior número de manuscritos que qualquer outro livro da
antiguidade, mas sobreviveu em forma mais pura que qualquer outro grande livro –
uma forma 99,5% pura”.4
O que dizer dos, às vezes, chamados “livros
ocultos da Bíblia”, como o Evangelho de Tomás (Tomé)? Esses livros foram
escritos nos séculos 2º e 3º d.C. por adeptos do gnosticismo. A reação dos
cristãos a este tipo de literatura foi imediata e radical. O gnosticismo foi
rechaçado e, com ele, toda sorte de literatura apócrifa, incluindo os falsos
evangelhos e outros escritos. Dessa forma, nunca fizeram parte do cânon das
escrituras cristãs. A sugestão de que sejam livros “perdidos” não se sustenta
diante da evidência histórica, pois, em primeiro lugar, tais obras fantasiosas
não foram aceitas pelos cristãos dos primeiros séculos.
O Jesus da
história versus o Cristo da fé
Uma questão derivada da anterior é a
relação entre o Jesus histórico e o Cristo adorado pelos cristãos. Seriam os
mesmos? A historicidade de Jesus é reconhecida universalmente hoje em dia, tanto
pelos cristãos como também pelos críticos da fé cristã. Nenhum estudioso sério
duvida da existência do carpinteiro de Nazaré. A discussão, entretanto,
centra-se na sua identidade. Para alguns críticos, como os do Jesus Seminar, os
cristãos teriam alterado a imagem de Jesus, um camponês galileu, atribuindo-lhe
uma identidade divina que o próprio Jesus nunca teria reclamado para si. Como um
rabino obscuro, e possivelmente um operador de curas, poderia ter-se
transformado num objeto de adoração de milhões de pessoas em todo o
mundo?
A resposta oferecida pelos críticos baseia-se na mesma premissa
utilizada para a questão da confiabilidade dos evangelhos. Cristãos de gerações
posteriores teriam criado mitos, por meio dos quais o humilde galileu foi
transformado no Filho de Deus, com prerrogativas que só o Deus dos judeus ou, em
menor grau, os deuses greco-romanos e das religiões de mistério possuíam. A
evidência histórica, entretanto, aponta em outra direção. Antes mesmo de os
evangelhos terem sido escritos, a crença em Cristo como Deus já havia-se
estabelecido entre os primeiros cristãos.
O apóstolo Paulo iniciou seu
ministério no final da década de 40 d.C. e muitas de suas principais epístolas
foram escritas na década seguinte. Nestas, Paulo incorporou credos e hinos dos
cristãos, seus contemporâneos. Em Filipenses 2.6-11, por exemplo, Paulo fala
inequivocamente de Jesus como “existindo em forma de Deus” antes de sua
encarnação. Em Colossenses 1.15-20, o apóstolo Paulo chama Jesus de a “imagem do
Deus invisível” no seu estado exaltado.
Alguns críticos chegam a acusar
Paulo de ter sido um dos responsáveis pela transformação do homem Jesus no
Cristo divino. Segundo eles, Paulo teria distorcido o evangelho original de
Jesus, convertendo-o de um simples rabino inovador no objeto de devoção de seus
discípulos posteriores. Estas acusações, entretanto, não se sustentam quando se
leva em conta a totalidade dos ensinos de Paulo a respeito de Jesus. Para o
apóstolo, o Cristo divino e exaltado pela ressurreição é o mesmo Jesus histórico
que morreu crucificado e foi ressuscitado ao terceiro dia. Em 1Coríntios 15.3-7,
Paulo afirma sua crença nos fatos históricos, circundando a morte de
Jesus:
“Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que
Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e
que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E que foi visto por
Cefas, e depois pelos doze. Depois foi visto, uma vez, por mais de quinhentos
irmãos, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormem também. Depois
foi visto por Tiago, depois por todos os apóstolos. E por derradeiro de todos me
apareceu também a mim, como a um abortivo”.
Estes mesmos fatos foram,
posteriormente, asseverados nos evangelhos pelas próprias testemunhas oculares
da crucificação e ressurreição de Jesus ou por autores ligados a essas
testemunhas. É relevante notar que Paulo disse ter recebido a informação
concernente à morte e ressurreição de Jesus. Craig Blomberg nota que, se a
crucificação se deu em 30 d.C., Paulo deve ter-se convertido ao cristianismo por
volta de 32 d.C. e, possivelmente, se encontrou com os apóstolos em Jerusalém
pela primeira vez em 32 d.C. Pode-se dizer, então, conclui Blomberg, que a
crença na ressurreição de Jesus pode ser datada dentro de dois anos do próprio
evento.
Quando comparada às biografias de Alexandre, escritas cerca de
quinhentos anos após a sua morte, por exemplo, ou aos mitos criados em relação a
personagens famosos da antiguidade, que levaram séculos para ser forjados, a
crença na ressurreição tem muito mais apoio histórico, pois foi esposada por
testemunhas dos fatos. Estas testemunhas depois a transmitiram a outros, entre
os quais Paulo, que, por sua vez, afirmava claramente sua crença na
historicidade da ressurreição.6
A importância da ressurreição para o
cristianismo
Ele ressuscitou! Essa é a diferença abissal que sempre
permanecerá entre Cristo e os demais fundadores históricos das religiões. Muitos
opositores do cristianismo aventam que não é um ato extraordinário ou inaudito
sofrer martírio em prol de uma causa, pois há registros históricos de outros
homens que assim fizeram. Entretanto, a diferença está aqui: no túmulo. Jesus
não está mais lá! Isso o torna singular. Os evangelhos atestam um Cristo que
esteve morto e está vivo, não um Cristo que esteve vivo e está morto. Veja que a
diferença de enfoque é franca. Metaforicamente, podemos dizer que o cristianismo
foi concebido de uma tumba vazia. Foi esta evidência que levou os discípulos a
entregarem suas vidas ao martírio. Eles não morreram por algo que havia sido
inventado por eles próprios e que reconheciam não ser verdadeiro, mas por terem
vivenciado as circunstâncias que evidenciaram a ressurreição de Cristo. Como diz
James Stewart: “O cristianismo é essencialmente uma religião de
ressurreição”.
Se ignorarmos a ressurreição de Cristo, o surgimento da
igreja será inexplicável. O evento histórico da ressurreição é a coroação dos
fatos e motivos que permearam a vida de Jesus entre os homens. Pela narrativa
bíblica, entendemos que: assim como somos compelidos a aceitar a veracidade da
encarnação, assim também somos em relação à veracidade da ressurreição. O
apóstolo Pedro declara a impossibilidade de Jesus não ter ressuscitado no plano
divino da redenção: “Ao qual Deus ressuscitou, soltas as ânsias da morte, pois
não era possível que fosse retido por ela” (At 2.24). Uma vez que Cristo morreu
para ressuscitar — “Pois é Cristo quem morreu, ou antes quem ressuscitou dentre
os mortos” (Rm 8.34) — reconhece-se uma lacuna indisfarçável, o fator
ressurreição, quando nos propomos a falar sobre a morte de Cristo.
O
uso pedagógico de The Passion
Diante de tanta polêmica gerada pelo
filme de Mel Gibson, cabe perguntar se a fita pode servir para algum propósito
maior. Muitos dos contendores parecem se esquecer de que o propósito “número um”
da indústria cinematográfica é o entretenimento. Mas ao mesmo tempo que diverte,
uma película também transmite uma mensagem. Resta saber que mensagem os milhões
de espectadores que já assistiram ao filme receberam.
The Passion of the
Christ tem sido comparado, em círculos cristãos, a uma produção anterior,
realizada pela Cruzada Estudantil para Cristo, intitulada Jesus, que, segundo a
própria Cruzada, foi o filme mais visto em toda a história. Inteiramente baseado
no evangelho de Lucas, Jesus foi produzido com objetivos claramente
evangelísticos e sem fins comerciais. Equipes viajam por todo o mundo, de carro,
em lombos de animais e até a pé, arriscando a própria vida para compartilhar a
mensagem de Jesus em todos os rincões habitados do planeta.
Embora feito
por um diretor de Hollywood, The Passion of the Christ não é um filme cristão,
no mesmo sentido que Jesus. Não se baseia exclusivamente nos relatos dos
evangelhos nem tem a pretensão declarada de ganhar adeptos para a fé cristã.
Contudo, é um testemunho desta fé. No melhor estilo dos épicos da capital do
cinema, narra “a maior história já contada”, ou pelo menos parte da mesma. E a
parte escolhida é extraída da porção central dos evangelhos, à qual os
evangelistas dedicaram comparativamente mais páginas que ao restante da vida e
ministério de Jesus. Embora não sejam tão gráficos nem tão detalhados como Mel
Gibson ao relatarem o sofrimento de Jesus, os autores dos evangelhos mostram
claramente que a encarnação de Cristo cumpriu seu objetivo na crucificação e
ressurreição de Jesus.
Tendo em mente que se trata de uma versão da
narrativa do evangelho segundo Mel Gibson, limitada pelas perspectivas do
diretor, The Passion pode ser utilizado como uma ferramenta para iniciar uma
conversa sobre o evangelho e o significado da paixão e morte de Jesus. Apesar
das limitações, é um instrumento válido de evangelização para uso de igrejas e
grupos paraeclesiásticos, bem como indivíduos que queiram compartilhar sua
fé.
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